domingo, junho 24, 2007

O racional e o ilusório

Fui levado a ler a coluna de Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo de 24 de junho (p. E2) por conta de uma citação que vi da mesma em que aparecia o seguinte trecho: “Tem ainda as vinculações de receita para educação, saúde...”.

Afinal, uma coluna que tinha como personagem central o presidente do Banco Central e que, de repente, fala da vinculação de receitas para a educação, ou seja, do principal mecanismo de financiamento da educação merece ser lida.

A coluna em questão faz a apresentação, de fato, de um homem vaidoso. Mas não apenas isso. A jornalista compõe um excelente quadro do personagem. Mostra a falsidade da aparente contradição entre o técnico e o político. Não há porque tudo no personagem é falso: ele vive num mundo que só possui correspondência com sua própria realidade. Um mundo realmente complexo, sem dúvida. Daí, naturalmente, se espantar com a “irracionalidade” daqueles que não habitam o seu círculo, ou seja, da grande maioria dos outros indivíduos.

Trata-se, de fato, de um grande vendedor... de suas próprias ilusões.

A partir do contexto (pois não está claro) é possível concluir que ele arrola a vinculação de receitas para educação e saúde entre os “problemas” relacionados aos gastos públicos.

Ou seja, ele vê como “problema” o mecanismo constitucional que impede que o Estado brasileiro adote de modo escancarado uma política genocida. Enfim, depreende-se que o presidente do Banco Central interpreta como um “problema” para o país o fato de a União ser obrigada a “gastar” 18% das receitas dos impostos federais (que fique claro, somente os impostos e não qualquer outro tributo) e os estados e municípios 25% de seus impostos e transferências, em educação.

Não que isso seja uma novidade em matéria de pensamento das diversas equipes econômicas que já passaram por Brasília. Ao contrário, é apenas a constatação de uma monótona regularidade.

Mas, ao mesmo tempo, por meio do texto citado, é possível ver que ele está acima do bem ou do mal. Afinal, como o próprio mostrou para a jornalista, ele foi apresentado por um jornal estrangeiro como alguém impressionante, ou ainda, de modo sintético, que “ele nasceu para isso”.

A palavra como veneno

Há inúmeros exemplos de órgãos da mídia que ultrapassam os limites éticos.

O jornalista Luis Nassif postou em seu blog um comentário de um leitor que faz uma reflexão sobre os custos e benefícios da injúria promovida por um órgão da mídia, especificamente, a revista Veja (ver aqui).

O comentarista vê a presença de um pensamento de curto prazo de natureza meramente contábil (pagamento de indenizações) que não estaria considerando o custo, no longo prazo, da perda da credibilidade.

Penso que o problema é muito sério. O que se vê na referida revista e, especialmente nos blogs de alguns de seus articulistas, é um estilo que, na ânsia de apontar o dedo, descamba para o abuso das palavras. A conseqüência é a impossibilidade do debate democrático. Contudo, é necessário destacar, não se trata de uma exclusividade dos órgãos da mídia mencionados.

Na Antiguidade já diziam que a palavra pode ser ao mesmo tempo um remédio e um veneno. Penso que é com este último sentido que ela tem funcionado nos casos referidos acima. Dessa forma, uma visita aos ditos blogs é uma experiência assustadora para aqueles que apreciam a convivência dentro dos limites do respeito entre os seres humanos.

Trata-se de um problema sério (com o perdão pelo uso de uma figura de linguagem extremamente pobre) porque as palavras venenosas matam o debate democrático. Como dialogar se os indivíduos não se respeitam? Como fazer a política se o objetivo se resume a desqualificar o outro?

É algo para se pensar o que podemos chamar de “projeto educativo” desses veículos e articulistas. A palavra, aspecto central em nossa condição de ser humano e elemento essencial para a possibilidade de vivermos em sociedade (a política só é possível porque usamos as palavras), usada de modo arbitrário, torna-se elemento para impedir o debate.

Os articulistas apresentam-se como contrários ao que denominam de onda do “politicamente correto”. Sob esse argumentam permitem-se fazer ataques virulentos, desproporcionais, inconseqüentes. Revisitam o espaço do já velho movimento da denúncia a qualquer custo. Gastam energia numa luta insana contra qualquer um (instituição, indivíduo ou idéia) que não esteja de acordo com o que consideram verdade. Vão a passos largos para as bandas da intolerância. Intolerância, ou autoritarismo, que alguns deles, contraditoriamente, dizem combater.

É lamentável percebe que, apesar de o país haver alcançado uma situação de estabilidade institucional nos últimos 20 anos, o debate político em certos órgãos da mídia ainda esteja marcado por posições antidemocráticas que desprezam o pensar em favor de um espetáculo barato.

sábado, junho 02, 2007

Sobre o uso das formas de tratamento e a desigualdade

No jornal Folha de S. Paulo do dia 01/06/2007 encontramos uma pequena notícia que parece banal (ou curiosa), mas que nos permite refletir um pouco sobre o papel do ensino formal na determinação de hierarquias sociais. Reproduziremos, abaixo, apenas o primeiro parágrafo do texto (o que é suficiente pois contém o elemento central). A notícia é seguinte:

Em Brasília, delegado quer ser tratado de "Excelência"

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO

DA REPORTAGEM LOCAL

Os delegados de polícia não andam satisfeitos por ser chamados de "doutor". Líderes da categoria em Brasília pediram em ofício ao comando da Polícia Civil no Distrito Federal que sejam tratados de "Vossa Excelência".


É preciso esclarecer que, o cargo de delegado de polícia só pode ser ocupado por indivíduo que tenha concluído a formação, em nível superior, como bacharel em direito. No próprio texto da notícia há o seguinte complemento:


Segundo o manual de redação da Presidência da República, esse pronome de tratamento [excelência] deve ser usado com o presidente, governadores, deputados, senadores e juízes. Para delegados de polícia, a forma é "Vossa Senhoria". A orientação é reproduzida no Manual de Comunicação Oficial do governo do Distrito Federal.


Penso que é possível refletir sobre o papel que o sistema escolar (especialmente do ensino superior) acaba por assumir numa sociedade em que a educação não se constitui como direito mas, ao contrário, se torna um privilégio. Nesse caso, a posse do saber escolar legitima e cristaliza as desigualdades.

Rigorosamente, doutor é título acadêmico. Trata-se de um título acadêmico que uma Universidade pode conferir e que, na hierarquia desses, é o maior. Para obtê-lo, o candidato deve apresentar proficiência em diversas provas sendo culminante a apresentação de uma obra prima (a tese de doutoramento) diante de uma banca de renomados doutores.

Como nosso sistema de ensino superior teve sua origem no primeiro império, em cursos profissionais em instituições isoladas de ensino (não universitárias – a USP, a primeira universidade brasileira que efetivamente funcionou só veio a existir em 1934), o título de bacharel acabou travestido de “doutor”.

Além disso, doutor virou um meio de, na linguagem do português do Brasil, expressar as profundas desigualdades de nossa sociedade (ainda hoje, em localidades do interior do país os homens do povo chamam de “doutor” qualquer pessoa que possui posses ou demonstra algum conhecimento formal – notadamente o uso do padrão culto da língua).

O uso de um anel com uma pedra colorida num dedo e a denominação de “doutor” na frente do nome atestava (atesta) que o portador pertencia (pertence) aos níveis mais elevados da hierarquia social. Quem está nos níveis inferiores dessa hierarquia compreende que deve teme-lo. Confere, deste modo, dentro dessas relações, poder aos outros que, no rigor da academia, não passam de bacharéis. Desse modo, o sistema escolar (especialmente o ensino superior), no Brasil, cumpriu o papel de ser o meio de distinguir os que mandam dos que devem obedecer.

Já excelência deveria representar uma virtude. Diferente do título acadêmico, que requer a obrigatória passagem do indivíduo pela instituição escolar e o cumprimento de procedimentos formais para obtenção do título, a excelência seria o reconhecimento social do conjunto de qualidades que um sujeito possui.

Infelizmente, por aqui, o termo nomeia um dos pólos das relações sociais assimétricas. Excelência passou a designar os que ocupam altos cargos na estrutura do Estado. São os poderosos (que devem ser temidos pelos outros).

Triste república é a nossa.

O uso de formas de tratamento doutor ou excelência que bacharéis em direito exigem não representam nada mais do que formas de violência simbólica (ou às vezes bem real) contra os demais cidadãos.

Parece pouco, mas não é. É um abuso. Um atentado contra um dos pilares do sistema republicano: o da igualdade civil (que eles, aliás, deveriam ser defensores). Expressa o caráter violento de nossa sociedade.

Quando vejo estas manifestações me recordo da leitura de Machado de Assis, no capítulo O almocreve, no Memórias Póstumas de Brás Cubas. O autor sintetiza com maestria como a elite (representada, por sinal, num bacharel – perdão, doutor) se relaciona com o povo.

A desprezível atitude de Sua Excelência Doutor Brás Cubas, como se vê, não muda, nem passados mais de cem anos de história.

Excelência sim, só a de Machado de Assis.