terça-feira, julho 27, 2010

Lembrei de Drummond

"Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro".
Estes são versos do poema Morte do leiteiro, de Carlos Drummond de Andrade (publicado em A Rosa do Povo).
Lembrei desses versos ao saber de um triste ocorrido em Fortaleza (CE), na tarde do dia 25 de julho de 2010. Uma guarnição da PM passa por uma movimentada avenida da cidade. Um policial atira contra os ocupantes de uma motocicleta. Morre um rapaz de 14 anos (a idade de meu filho...) que ia na garupa. O condutor da moto era o próprio pai. Vinham, no final da tarde, do trabalho. O pai era técnico de refrigeração. Tinha o filho como ajudante. Havia atendido um cliente.
Nos versos de Drummond um jovem leiteiro entrega o produto durante a madrugada. Faz o seu trabalho discretamente para não acordar ninguém.
"Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha".
Mas, é inevitável algum pequeno barulho. Com isso um homem
..."acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro".
Como o homem do poema, o policial estava num sono-vigília que impede de pensar. Então, as únicas regras que existem são: "ladrões infestam o bairro" e "ladrão se mata com tiro".
O resultado, nos dois casos, foi o mesmo. No poema
..."o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente".
O policial, desesperado, afirma: foi um disparo acidental.
Acontecido o desastre, a cidade pára em torno da cena que constrói a história.
"Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei".
Em Fortaleza, na tarde daquele dia, no meio da rua, ferramentas espalhadas no asfalto acusam a origem dos personagens. O chão da rua expõe, então, o que não gostaríamos de ver.